Desde que Menênio Agrippa se dirigiu aos romanos, que haviam entrado em greve e ocupado o Monte Sagrado no século VI a.C., a concepção "orgânica" da ordem social vem sendo defendida em inúmeras ocasiões. Segundo o tão reverenciado cônsul romano que era conhecido como um "homem de pontos de vista moderados", cada camada social tem seu "próprio lugar" no grande organismo. As camadas inferiores devem obter sua satisfação a partir da "glória refletida" e, independentemente de sua inferioridade, ser consideradas "igualmente importantes" para o funcionamento do organismo a que pertencem.
Evidentemente, esse foi um poderosíssimo exercício ideológico. Segundo a lenda, os que protestavam se comoveram tanto com os "pontos de vista moderados" do cônsul que, imediatamente, abandonaram sua postura de desafio coletivo e retornaram aos lugares a eles determinados.
Seja como for, pelo menos um fato histórico é inquestionável: eles se mantiveram vinculados aos seus "próprios lugares" na sociedade, nesses últimos dois milênios e meio que se passaram desde o paradigmático Sermão de Estado, pronunciado por Agrippa no Monte Sagrado, "participando", assim, da reprodução da ordem estabelecida através de todos os ajustamentos necessários às condições mutáveis da dominação.
O que nos interessa diretamente é o papel específico da ideologia nesse processo de ajustamentos estruturais, pois a reprodução bem sucedida das condições de dominação não pode ocorrer sem a intervenção ativa de fatores ideológicos poderosos, do lado da manutenção da ordem vigente.
É claro que a ideologia dominante tem interesse patente na preservação do status quo, no qual mesmo as desigualdades mais clamorosas estão "estruturalmente" entrincheiradas e protegidas. Portanto, ela pode se permitir ser "consensual", "orgânica", "participativa" e assim por diante, reivindicando, desse modo, também a racionalidade auto-evidente da "moderação", "objetividade" e neutralidade ideológicas (dominantes).
Ademais, o fato é que estamos discorrendo sobre sociedades de classes que são,necessariamente, divididas por contradições internas e antagonismos, independentemente do sucesso da reprodução do quadro estrutural hierárquico de super e subordinação e da aparência de "comunidade" através dos tempos. E já que os parâmetros de exploração de classes da sociedade se mantêm "intocáveis", as várias teorias de "vida social orgânica", "consenso", "participação" etc. são "postulados morais" impotentes, ou racionalizações apologéticas e legitimações do injustificável, desde Agrippa até seus longínquos descendentes da nossa época.
Deve-se enfatizar que o poder da ideologia dominante é indubitavelmente enorme, não só pelo esmagador poder material e por um equivalente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes, mas também porque esse poder ideológico só pode prevalecer graças à preponderância da mistificação, por meio da qual os receptores potenciais podem ser induzidos a endossar, "consensualmente", valores e diretrizes práticas que são, na realidade, totalmente adversos a seus interesses vitais.
A esse respeito, a posição das ideologias conflitantes é decididamente assimétricas. As ideologias críticas, que procuram negar a ordem estabelecida, não podem sequer mistificar seus adversários, pela simples razão de não terem nada a oferecer - nem mesmo subornos ou recompensas pela aceitação - àqueles já bem estabelecidos em suas posições de comando, conscientes de seus interesses imediatos palpáveis. Portanto, o poder de mistificação sobre o adversário é privilégio exclusivo da ideologia dominante.
Esse texto acima é um trecho da introdução do livro Filosofia, ideologia e ciência social do cientista político István Mészáros. Seu conteúdo é de fácil assimilação: 1) a ideia de sociedade orgânica não é nova e os dominados aceitam sua condição como algo necessário para a manutenção da ordem. De certa forma, a religião sedimentou este pensamento, visto que se determinada pessoa está em tal condição só pode ser por vontade divina. ( O texto supra-citado não aborda a religião diretamente, mas, indiretamente fica sub-entendido pelo conceito ideologia, pois toda religião têm caráter ideológico). 2) podemos dizer ainda que o arsenal político-cultural soma-se a um poder mistificador exclusivo da classe dominante que é usado para manter seu estado de dominadores. Esse talvez seja a maior fraqueza da ideologias (propostas) alternativas, visto que não têm esse arsenal a seu dispor nem muito menos um mecanismo mistificante a oferecer. Por essa razão cria-se nos sujeitos a sensação de não-recompensa em aderir à outras propostas que não seja a vigente. 3) por fim, entendemos que há uma continuidade histórica nesse paradigma ideológico dominante. Nunca foi tão gritante as vozes dissidentes de nossa época que vai de encontro à esse modelo que é, desumanizante pois em sua essência está o veneno da exploração a qualquer custo (mesmo de vidas) para se manter no poder.
Erivan