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Dom Hélder Câmara |
Para os jovens, as destinatárias da salvação passavam a ser as massas, cuja
plena realização
estava obstruída
pelas estruturas
sociais
"No Brasil, até 1964, uns 90% dos militantes políticos ou eram católicos ou tinham pai e mãe católicos tinham saído do cristianismo". Herbert José de Souza - o Betinho, principal líder da esquerda católica até 1965 - relembrou nessa frase seus tempos de militância, constatando que a vida política brasileira não pode ser dissociada do cristianismo, particularmente do catolicismo. A partir dos anos 50-60, surgiria a esquerda cristã cuja história merece ser conhecida.
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Betinho |
A Juventude Universitária Católica (JUC) era um setor especializado da Ação Católica, apostolados de leigos promovido pela alta hierarquia da Igreja Católica. Só por volta de 1950 a JUC tornou-se um movimento social significativo. Então ele se movia no universo ideológico do catolicismo tradicional. Com o tempo, os jovens da JUC passaram a questionar aspectos das ideias dominantes na igreja, como a passividade política diante da ordem estabelecida, num contexto de convivência universitária com outras correntes de pensamento. Eles eram influenciados pela discussão teórica no interior da própria igreja, em particular pelas obras de Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Pierre Teilhard de Chardin. Ficaram marcados pelo pontificado progressista do papa João XXIII a partir de 1958, e pelo Concílio Vaticano II.
Ademais, eles conviviam com as desigualdades gritantes da sociedade brasileira e com o ascenso na mobilização política de trabalhadores urbanos e rurais, numa dada evolução da conjuntura política nos anos liberais do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), seguidos do breve governo de Jânio Quadros (1961), cuja renúncia levaria o trabalhista João Goulart à presidência da República (1961-1964).
No plano internacional, estavam em curso inúmeras revoluções da libertação nacional, marcadas pelo ideário socialista ou terceiro-mundista, por exemplo a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962 e outras. Além disso, o modelo soviético de socialismo era contestado, o que também se fazia sentir no plano interno: começavam a surgir novas referências na esquerda - inclusive de cristãos - , que ameaçava a hegemonia do pró-soviético e clandestino Partido Comunista Brasileiro.
Especialmente para setores cristãos jovens, destinatárias da salvação passavam a ser as massas humanas, cuja plena realização estaria obstruídas pelas estruturas econômicas, sociais e políticas existentes, as quais urgia modificar. Para isso, seria preciso ir além da hierarquia eclesiástica, o que abria um campo de tensão com a igreja.
Aos poucos, o humanismo da JUC foi deixando de ser apenas cristão, vinha mesclado com análise de inspiração marxista. Questionada pelo episcopado e impulsionada por um movimento social que já não cabia nos limites da igreja, a ala mais à esquerda da JUC criaria a Ação Popular (AP), em 1962, associada a outras forças, como setores protestantes e estudantes independentes de esquerda. Especialmente a ordem dos dominicanos foi influenciada pela militância na JUC naquele período, incluindo alguns frades que, depois de 1964, ligaram-se ao esquema guerrilheiro organizado pelo líder comunista Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional, em 1967.
A Ação Popular estava implantada principalmente no movimento estudantil, no qual, manteve a presidência da União Nacional dos Estudantes e de outras entidades nos anos 60. A pretensão era criar no Brasil uma terceira via, socialista e democrática, ao mundo polarizado da Guerra Fria.
Além do trabalho com estudantes,a AP pretendia lançar-se à organização política de operários e camponeses. Entre estes últimos, conseguiu certa inserção, em especial por meio da participação no Movimento de Educação de Base da Igreja Católica. Paralelamente, a partir de Recife, desenvolveu-se o sistema revolucionário de alfabetização do educador católico Paulo Freire, sistema do qual participaram também membros da AP.
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Paulo Freire |
A AP obteve certo êxito no processo de organização de sindicatos rurais, promovido pela Superintendência para a Reforma Agrária. Alguns de seus líderes participaram da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, bem como do alto escalão do Ministério da Educação. Ou seja, embora com discurso e postura à esquerda do governo, a AP integrou-se ao esforço reformista da época,a partir da ação do Estado, junto ao qual reivindicava a implementação das chamadas
reformas de base para obter melhor distribuição de riquezas e direitos sociais.
Com o golpe de 1964, lideranças da AP foram perseguidas e presas. Mesmo assim, em parte sob a cobertura de setores da igreja, a organização buscou tomar iniciativas para a resistência. Os dirigentes passaram a viver na clandestinidade, alguns saíram do país, caso de José Serra, Betinho, Aldo Arantes e Paulo Writght. Depois de 1964, a AP enviou alguns militantes a Cuba e outros à China, que vivia a revolução cultural proletária. Foram-se se formando duas alas no interior da AP: a Corrente 1, que propunha para o Brasil uma revolução inspirada no modelo chinês; e a Corrente 2, resistente a maoização da AP e considerada foquista por seus adversários. A luta interna culminou com a expulsão dos adeptos da Corrente 2, em 1968: estava definida a adesão da AP ao maoísmo. Os expulsos de AP juntaram-se a outros segmentos esparsos de esquerda para constituir o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, que aderiu à guerrilha urbana e logo viria a dissolver-se em 1971-1972.
Sob inspiração da revolução cultural proletária chinesa, iniciou-se em 1967-68 a "integração na produção" ou "movimento de prolitarização" dos militantes de origem pequeno-burguesa, que constituíam vasta maioria na AP. Eles foram convencidos a realizar trabalho braçal no campo ou nas cidades. Agora com uma formulação ideológica, recolocava-se a experiência dos padres operários, atuantes especialmente na Fança nos anos 40-50. Apesar de muitos de seus militantes ainda se considerarem cristãos, essa condição não era assumida pela organização, que, em 1971, passou a denominar-se Ação Popular Marxista-Leninista (APML).

Nesse processo, em 1973, após o fim da desgastante experiência de proletarização dos militantes,a maioria integrou-se ao Partido Comunista do Brasil, que também era vinculado à China. Contudo, uma minoria reorganizou a APML. Apesar da morte ou da prisão de vários de seus dirigentes, ela sobreviveria até o início dos anos 80, quando grande parte de seus quadros integrou-se ao Partido dos Trabalhadores. Nele se reencontraram outros militantes dos setores progressistas da Igreja Católica, cujas origens remontavam também à JUC, e como os quais o pessoal da APLM jamais haviam perdido contato. Alguns ex-integrantes ou simpatizantes da JUC, e mais tarde da AP, viriam a ocupar postos importantes no governo federal de Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira.
É sabido que a maioria da Igreja Católica apoiou o golpe de 1964. Mas os rumos do regime militar, o desrespeito aos direitos humanos e o trabalho pastoral junto aos pobres viriam a colocar setores significativos da própria Igreja no oposição, especialmente a partir da edição do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, que escancarava o caráter ditatorial do governo. Naquele mesmo ano, em agosto, fora realizada em Medellín, na Colômbia, a Conferência do Episcopado Latino-Americano, na qual se esboçaram a opção preferencial pelos pobres e a defesa dos direitos humanos, constantemente violados pelas ditaduras que dominavam a região.
Matriz romântica
Estavam dadas as bases para o surgimento da
Teologia da Libertação, título também do famoso livro do peruano Gustavo Gutiérrez, de 1971. Ele declarou que, enquanto o redigia, em 1969, "parou na metade e sentiu necessidade de vir ao Brasil para discutir certos detalhes e entrevistar antigos militantes da JUC, sobretudo aqueles do período 1960-1963"
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Livro de G. Gutiérrez |
A Teologia da Libertação, associadas às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a partir dos anos 70, encontrava suas origens na velha JUC - e também na Juventude Estudantl Católica (JEC), na Juventude Operária Católica (JOC), na Juventude Agrária Católica (JAC) e na Juventude Independente Católica (JIC), todas ligadas à Ação Católica Brasileira e fornecedoras de quadros para AP na década de 60.
A Teologia da Libertação faz uso de instrumental teórico marxista, mas suas fontes principais estão em vertentes do próprio pensamento social da Igreja e na experiência vivida com os pobres da América Latina, marcando um certo tipo de romantismo revolucionário que não se confunde com o marxismo, embora seja possível aproximá-lo de suas vertentes românticas.
Já argumentei em outro lugar que aquilo que permite explicar o trânsito da AP pelo cristianismo, depois pelas ideias de Che Guevara e de Mao Tse-Tung, é a vinculação a uma certa matriz romântica, que assumiu formas distintas na ação política e no pensamento de seus integrantes em diferentes conjunturas, basicamente, a comunhão com os pobres da terra, na contra-mão da modernidade capitalista. Em boa medida,a Teologia da Libertação é herdeira do romantismo revolucionário que deu origem à AP.
O Brasil foi o país em que os adeptos da Teologia da Libertação conquistaram maior peso no seio da Igreja Católica a partir dos anos 70, o que talvez se explique por fatos como a crescente participação dos leigos na vida católica, a influência do catolicismo francês que vinha dos anos 40-50, o fato de vários setores de oposição à ditadura encontrarem na Igreja seu último refúgio, a rapidez e a radicalidade da modernização autoritária no Brasil, quando se desenvolvia um "capitalismo selvagem" que colocava setores populares das bases da Igreja em situação precária no campo e na periferia das grandes cidades. Ademais, a derrota do enfrentamento aberto contra a ditadura nos anos 60 e início dos 70 colocava a necessidade do lento trabalho no interior das instituições, com a valorização da experiência popular e democrática.
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Leonardo Boff |
Sob o impulso de bravos defensores dos direitos humanos, como Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo a partir de 1970, dos teólogos da Libertação, como Leonardo Boff, e da própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sob a direção de Dom Ivo Lorscheiter, setores da Igreja passaram a constituir o principal inimigo da ditadura - notadamente a figura de Dom Helder Câmara - e tornaram-se agentes do processo de redemocratização, já irreversível no final da década de 70.
Desse ambiente, surgiu uma nova atuação político-partidária de setores da Igreja. Sobretudo as Comunidades Eclesiais de Base tiveram forte presença nos novos movimentos sociais do final dos anos 70 e converteram-se numa das bases do tripé que daria vida ao Parido dos Trabalhadores (PT), junto com o novo sindicalismo e com setores da intelectualidade de esquerda, em grande parte militante ou ex-militante de pequenos grupos marxistas clandestinos. Assim, o PT repetia e potencializava um fenômeno do início dos anos 60, agora em proporção maior: a exemplo da antiga AP, o partido surgia com forte influência católica de esquerda, que ainda subsiste em nossos dias, embora esmaecida.
A Teologia da Libertação, as CEBs e a esquerda católica já não são mais o que foram, enfrentam crise profunda, confrontando-se com a linha cada vez mais tradicionalista do Vaticano, em sintonia com a onda política conservadora que tem dominado o cenário internacional a partir dos anos 80. Mas sua herança continua, não só dentro da Igreja. Por exemplo, no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que nasceu da Pastoral da Terra e conserva até hoje uma forte ligação com sua origem católica de esquerda, notável na sua "mística" e forma de organização.
Fonte: revista História Viva - Temas brasileiros
"Esquerda no Brasil, uma história nas sombras"
Edição número 5