sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Indignação ética e o sujeito

"E cada vez mais, as pessoas
confundem a dignidade humana
como lugar social"


A experiência fundante do que a Teologia da Libertação chamou de momento primeiro é a indignação ética. Por mais graves que sejam os problemas sociais, nem todas as pessoas sentem essa indignação ética. Há aquelas que não sentem esta indignação porque nem mais enxergam as pessoas vitimadas. Ou porque simplesmente as excluíram do seu campo de sentido/visão, ou porque não mais consideram pessoas. Há também aquelas que se sentem incomodadas com a visão do sofrimento das vítimas, mas o incômodo não chega à indignação ética e com o tempo o esquecem.

  O que acontece quando alguém sente esta indignação ética?E claro que é impossível responder plenamente a esta pergunta. Cada experiência é diferente da outra e pressupõe mundos e histórias das pessoas envolvidas. Contudo, queremos pontuar dois aspectos para a nossa reflexão.

  Para que uma pessoa possa se indignar frente a uma situação em que alguém está sendo tratado ou reduzido a uma condição sub-humana é preciso que aquela pessoa reconheça a humanidade desta. Sem este reconhecimento não há indignação ética, pois ninguém se indigna frente a uma situação em que um ser sub-humano está sendo tratado como um sub-humano. Muitas pessoas não se indignam frente a estas situações porque elas não conseguem "ver" e reconhecer a humanidade destas pessoas.

  Esta dificuldade em reconhecer a humanidade das vítimas destas situações tem a ver com a dificuldade em diferenciar o lugar e o papel sociais destas pessoas da sua dignidade como ser humano. E cada vez mais, as pessoas confundem dignidade humana com lugar social. Na cultura de consumo, o padrão de consumo é o fator determinante na definição da identidade e do reconhecimento da dignidade dos indivíduos. Os não consumidores são vistos como não pessoas. Quanto mais baixo o lugar que ocupa na hierarquia sociocultural, menos humano.

 Na indignação ética há o reconhecimento da humanidade das pessoas para além do papel ou lugar social. As pessoas são reconhecidas na gratuidade, isto é, independentemente da sua capacidade de consumo, condição social, sexual, étnica, religiosa, etc. Em caso extremo, por exemplo, se na nossa sociedade encontramos um indivíduo pobre, negra, mulher, lésbica, prostituta, aidética, deficiente físico, feia e velha, e ainda conseguimos ver um ser humano com a sua dignidade fundamental, temos realmente uma experiência espiritual da graça (reconhecimento na pura gratuidade, para além de toda convenção social) e de fé (ver o que é invisível aos "olhos do mundo").

  Na nossa sociedade, marcada pela busca desenfreada do sucesso como forma de "justificar" a existência humana, este reconhecimento gratuito entre sujeitos na relação sujeito-sujeito, "face a face", é uma verdadeira experiência espiritual da graça e da justificação pela fé. É uma experiência que justifica a existência não só da pessoa oprimida, mas também a da pessoa que sente a indignação. Razão pela qual esta experiência é percebida como libertadora tanto para quem sente a indignação, quanto para aquela que é vítima e é reconhecida como pessoa. É por isso que a experiência da indignação ética que leva ao compromisso social foi e deve ser interpretada como uma verdadeira experiência espiritual.

  Um segundo aspecto importante é o seu horizonte de desejo utópico que é pressuposto na indignação ética. É o horizonte utópico de uma realidade, onde as pessoas são reconhecidas e respeitadas independentemente da sua condição social que nos faz ver a situação atual como eticamente inaceitável e como uma situação que deve ser transformada. Sem este desejo de um mundo distinto, não poderíamos sentir a indignação. Ao mesmo tempo, é a indignação que nos faz "ver" este horizonte utópico.

  Em um primeiro momento, este horizonte nos aparece como uma imaginação utópica, isto é, como uma imaginação de um mundo liberto de todas as formas de opressão e de objetificação do ser humano. Depois, esta imaginação é trabalhada e se nos apresenta como um "projeto" de uma nova sociedade. Algumas vezes, em ambientes cristãos, como "projeto de Deus".

  Na medida que este horizonte (imaginativo ou "projeto utópico") é o que nos permite compreender a realidade atual como inaceitável e modificável e é, ao mesmo tempo, objeto de desejo, passamos a acreditar - porque desejamos - que ele é factível, realizável plenamente no interior da história. Do desejo de que ele seja possível, passamos a acreditar que é possível. E, algumas vezes, o desejo nos leva a crer que não somente é possível, mas que também é inevitável.

  E, ao pensá-lo realizável, nos enfrentamos com a necessidade de um sujeito que realize ou "construa" este horizonte/projeto no interior da história. Aqui aparece a utilização de conceitos como "sujeito histórico", "sujeitos da história", "protagonista da história".

  Estes dois aspectos da indignação ética, aspectos complementares e intrinsecamente relacionados, nos apresentam duas noções ou facetas do sujeito: a) o sujeito que é reconhecido e se reconhece mutuamente para além de todos os papéis ou lugares sociais; b) sujeito construtor ou realizador em plenitude do horizonte utópico ou do projeto de uma sociedade totalmente nova, a nova terra e o novo ser humano.

Fonte: Sujeitos e sociedades complexas - Ed. Vozes
 Jung Mo Sung

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