segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O Riso na Idade Média

Por Jacques Le Goff

Quando começo a apresentar minha pesquisa sobre o riso na Idade Média, sinto certa apreensão. Afinal de contas, Voltaire não escreveu que "as pessoas que buscam causas metafísicas para o riso não são alegres"? Porém, não estou buscando causas metafísicas para o riso. Na verdade, tento resgatar, sobretudo em relação a Idade Média, o que a sociedade achava do riso, as posições teóricas que adotou e como o riso, em suas várias formas, funcionou na sociedade medieval.
 Eu gostaria de convencer o leitor de que o riso é um assunto sobre o qual vale a pena refletir e, em particular, estudar em termos históricos. Espero confirmar uma observação inicial e muito genérica, mas que não deve ser negligenciada: o riso é um fenômeno cultural. De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que rir e outra de quem se rir, e também, muitas vezes, da pessoa ou das pessoas com que se rir. É uma prática social com seus próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco. Eu diria até mesmo que este é o único ponto interessante abordado por Bergson. Ele salienta essa dimensão social, por vezes de modo especialmente feliz,e foi nessa área que Freud percebeu uma convergência de suas próprias teorias com a ideia de Bergson. Como fenômeno cultural e social, o riso deve ter uma história. Por isso me sinto compelido a levar o leitor para o lado sério do riso - algo que eu conheço bem. Em 1983, o americano John Morreall publicou seu interessante livro Taking laughter seriously (Levando o riso a sério), e cinco anos mais tarde o italiano F. Ceccarelli publicou o seu estudo Sorriso e riso. Depois de nos lembrar que toda explicação do ridículo simplesmente mata o riso e que a morte do riso deveria nos alarmar, porque ele é uma fonte de prazer, o autor embarca numa longa investigação e no final conclui: "É muito difícil não admitir a importância de sorrir e rir, de qualquer ponto de vista." Ele acrescenta, de maneira muito hábil, que a facilidade com que muita gente considera fútil o estudo do riso e do sorriso é apenas parte de seu problema e de sua função. Concluirei citando o autor russo Alexander Herzen, que a mais de um século observou: "Seria muito interessante escrever a história do riso". O que eu gostaria de fazer aqui é esboçar os problemas que surgem quando se constrói a história do riso no Ocidente medieval.
  
Por julgar que isso possa esclarecer minhas premissas e, ao mesmo tempo, responder pelas deficiências e lacunas de minha abordagem, começarei delineando como esse tema surgiu em minha pesquisa e descrevendo minhas motivações e objetivos originais. Depois, enumerarei os problemas encontrados no curso de minha investigação, problemas esses que definem as premissas. Devo acrescentar que meu trabalho ainda está em fase exploratória. O que não deve ser tomado como um captatio benevolentiae. Há alguns anos, meus amigos e eu dedicamos um seminário a esse assunto e muitos dos participantes já fizeram contribuições muito interessantes, tanto no nível teórico quanto no nível documental. Finalmente, como um exemplo, tratarei de um ponto particular que eu pude, até agora, estudar com certa profundidade, o riso dos monges, risus monasticus, na Alta Idade Média. Também sugerirei algumas diretrizes para uma história da evolução das atitudes em relação ao riso e as forma do riso, assim como para o lugar do riso no sociedade medieval, do fim da Antiguidade ao Renascimento.


FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DE MINHA PESQUISA

Na minha opinião, um estudo da história do riso tem dois aspectos. As etapas, o método, a formulação do problema e, mais importante, a documentação são diferentes para cada um - de um lado, as atitudes em relação ao riso; de outro, as manifestações do riso por outra pessoas. Poderia ser feita aqui uma distinção tradicional e falar-se da "teoria e da prática do riso". Em relação ao primeiro aspecto, é relativamente fácil reunir os textos mais ou menos teóricos e normativos que nos fornecem tanto atitudes em relação ao riso como recomendações de como se rir. Observa-se que, assim como a etiqueta à mesa, há uma série inteira de textos sobre os modos de rir. Talvez estejamos bem mais munidos em relação a esses textos.

 o problema da prática do riso é mais complexo. Aqui, novamente, penso que nos deparamos com dois subconjuntos. De um lado, há os textos que mencionam, de forma muito limitada e ingênua, a presença e as formas do riso - por exemplo, em uma crônica em que se vê alguém começando a rir. Experimentar e assimilar todos esses exemplos do riso é importante para uma investigação desta natureza, mas percebe-se o trabalho que isso requer. Por outro lado, há o enorme campo do que geralmente é descrito como cômico. Aqui há uma dificuldade bem diferente, porque é necessário transformar uma análise dos problemas do cômico em uma análise equivalente do riso, sem, naturalmente, perder de vista o que é peculiar ao cômico ou aos textos nos quais é expresso. Em outra palavras, deve-se distinguir os textos nos quais o riso é julgado daqueles cujo objetivo é nos fazer rir. Eles são muito diferentes. E aqui encontramos um dos grandes problemas de nossa pesquisa - a heterogeneidade dos documentos, questões e conceitos. Temos que descobrir se há uma noção unificadora por trás de todos. Devo acrescentar que aqui nos deparamos com uma história dos valores e das atitudes mentais por um lado e, por outro, com uma história das representações literárias e artísticas: uma história do riso e do fazer rir.

 Portanto, temos inicialmente um grande problema: o dos complexos encadeamentos entre estes quatro domínios - valores, pensamentos, práticas e estéticas do riso. Para acrescentar mais uma observação preliminar: embora haja numerosas categorias de riso e o jogo de palavras não seja a categoria mais importante para provocá-lo, é preciso acentuar a importância das palavras e da linguagem. Felizmente, aqui o historiador está mais bem abastecido. Há algum tempo já sabemos usar as perspectivas da linguagem, do vocabulário e da semântica, embora o número de estudos sérios e inteligentes nessa área ainda seja muito pequeno. Finalmente, há o problema do meio linguístico, familiar aos medievalistas: temos que conduzir nossa pesquisa no domínio do latim e no das línguas vernáculas. Penso que essa segunda investigação é ainda mais importante, pois, por diversas razões interessantes, as pessoas riem melhor no vernáculo que em latim. Se são a sua difusão, heterogeneidade e fragmentação que constituem um dos maiores impedimentos ao estudo do assunto, isso, não obstante, permite-nos tocar em muitos temas fundamentais do período em questão.

(continua...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário