terça-feira, 15 de novembro de 2011

Infância Despedaçada

Efetivamente, alguns sinais não enganam. Ao reaparecimento da mendicância, do desemprego, das sopas populares, das "classes perigosas" nos bairros dos subúrbios, veio acrescentar-se - como prova suplementar da desumanização que provoca, neste fim de século, a globalização econômica - a figura social de criança trabalhadora.

Já no século XIX, o agravamento das desigualdades se refletia particularmente na exploração das crianças, cujo emprego se generalizara. Descrevendo, em 1840, num célebre relatório, o estado dos meninos operários na França, quando a duração do trabalho era de 14 horas por dia, Louis Villermé evocara "essa multidão de crianças, das quais algumas mal têm sete anos, magras, esquálidas, cobertas de farrapos, que vão descalças para as manufaturas, com chuva e lama, pálidas, inquietas, oferecendo uma aparência de miséria, de sofrimento e abatimento".

Longe de comover-se com tal situação - que romancistas como Charles Dickens, Victor Hugo, Hector Malot, Jules Vallès, Émile Zola e Edmondo de Amicis também denunciaram - certos liberais a consideravam como um "mal necessário": "Essa miséria, escrevia um deles, oferece um espetáculo salutar para toda uma parte das classes menos felizes que permaneceu sã; ela é feita para encher de espanto; ela as exorta para as virtudes difíceis de que elas precisam para chegar a uma condição melhor"

Diante desse cinismo, como não compreender a revolta, por exemplo, de Karl Marx, que no seu Manifesto do partido comunista, em 1848, denunciará " a grande indústria, que destrói todo laço de família do proletário e transforma as crianças em simples artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho", e exigirá a "abolição do trabalho infantil nas fábricas, tal como se faz hoje"?
A história mostrou que a abolição progressiva do trabalho infantil e a instauração do ensino obrigatório foram, na Europa Ocidental e na América do Norte, as condições indispensáveis para o desenvolvimento. Entretanto, só em 1990, ratificada pela ONU -com a exceção dos Estados Unidos- a Convenção sobre os direitos da criança entrou em vigor e fixou, como desejava a Organização Internacional de Trabalho (OIT) desde 1973, uma idade mínima para a entrada no mundo do trabalho.

 Apesar disso, estima-se que cerce de 250 milhões de crianças trabalham, das quais as mais jovens não tem cinco anos... Se o maior número delas se encontram nos países pobres do Sul, muitas são exploradas nos Estados do Norte. No conjunto da União Européia, seu número passaria de 2 milhões, especialmente nas zonas afetadas pelas reestruturações ultraliberais como o Reino Unido. Mas, mesmo em países considerados "socialmente avançados" - Dinamarca, Países Baixos... - o fenômeno da criança trabalhadora reapareceu. "Também na França, afirma um perito do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Várias dezenas de milhares de crianças exercem um emprego assalariado a pretexto de aprendizagem, e 59% dos aprendizes trabalham mais 40 horas por semana, e às vezes 60".

 Em escala planetária, o número de crianças trabalhadoras não pára de crescer. Em certos países, como o Paquistão, é um flagelo de massa; por dezenas de milhões, crianças de menos de seis anos são exploradas.
Na América Latina, uma entre cinco crianças trabalha; na África, uma entre três; na Ásia, uma entre duas! O primeiro setor que emprega crianças é a agricultura. Pratica-se, muitas vezes, a servidão através das dívidas: as crianças devem pagar com seu labor a dívida contraída pelos pais ou avôs. Escravos de fato, essas crianças nunca deixarão essa condição; nela passarão a vida e se casarão, dando nascimento a novos escravos...

Vide: Guerras do século XXI - novos temores e novas ameaças
Ignácio Ramonet
Ed. Vozes

                                                        Trabalho Terceiro Mundo: criança esperança

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O Riso na Idade Média

Por Jacques Le Goff

Quando começo a apresentar minha pesquisa sobre o riso na Idade Média, sinto certa apreensão. Afinal de contas, Voltaire não escreveu que "as pessoas que buscam causas metafísicas para o riso não são alegres"? Porém, não estou buscando causas metafísicas para o riso. Na verdade, tento resgatar, sobretudo em relação a Idade Média, o que a sociedade achava do riso, as posições teóricas que adotou e como o riso, em suas várias formas, funcionou na sociedade medieval.
 Eu gostaria de convencer o leitor de que o riso é um assunto sobre o qual vale a pena refletir e, em particular, estudar em termos históricos. Espero confirmar uma observação inicial e muito genérica, mas que não deve ser negligenciada: o riso é um fenômeno cultural. De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que rir e outra de quem se rir, e também, muitas vezes, da pessoa ou das pessoas com que se rir. É uma prática social com seus próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco. Eu diria até mesmo que este é o único ponto interessante abordado por Bergson. Ele salienta essa dimensão social, por vezes de modo especialmente feliz,e foi nessa área que Freud percebeu uma convergência de suas próprias teorias com a ideia de Bergson. Como fenômeno cultural e social, o riso deve ter uma história. Por isso me sinto compelido a levar o leitor para o lado sério do riso - algo que eu conheço bem. Em 1983, o americano John Morreall publicou seu interessante livro Taking laughter seriously (Levando o riso a sério), e cinco anos mais tarde o italiano F. Ceccarelli publicou o seu estudo Sorriso e riso. Depois de nos lembrar que toda explicação do ridículo simplesmente mata o riso e que a morte do riso deveria nos alarmar, porque ele é uma fonte de prazer, o autor embarca numa longa investigação e no final conclui: "É muito difícil não admitir a importância de sorrir e rir, de qualquer ponto de vista." Ele acrescenta, de maneira muito hábil, que a facilidade com que muita gente considera fútil o estudo do riso e do sorriso é apenas parte de seu problema e de sua função. Concluirei citando o autor russo Alexander Herzen, que a mais de um século observou: "Seria muito interessante escrever a história do riso". O que eu gostaria de fazer aqui é esboçar os problemas que surgem quando se constrói a história do riso no Ocidente medieval.
  
Por julgar que isso possa esclarecer minhas premissas e, ao mesmo tempo, responder pelas deficiências e lacunas de minha abordagem, começarei delineando como esse tema surgiu em minha pesquisa e descrevendo minhas motivações e objetivos originais. Depois, enumerarei os problemas encontrados no curso de minha investigação, problemas esses que definem as premissas. Devo acrescentar que meu trabalho ainda está em fase exploratória. O que não deve ser tomado como um captatio benevolentiae. Há alguns anos, meus amigos e eu dedicamos um seminário a esse assunto e muitos dos participantes já fizeram contribuições muito interessantes, tanto no nível teórico quanto no nível documental. Finalmente, como um exemplo, tratarei de um ponto particular que eu pude, até agora, estudar com certa profundidade, o riso dos monges, risus monasticus, na Alta Idade Média. Também sugerirei algumas diretrizes para uma história da evolução das atitudes em relação ao riso e as forma do riso, assim como para o lugar do riso no sociedade medieval, do fim da Antiguidade ao Renascimento.


FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DE MINHA PESQUISA

Na minha opinião, um estudo da história do riso tem dois aspectos. As etapas, o método, a formulação do problema e, mais importante, a documentação são diferentes para cada um - de um lado, as atitudes em relação ao riso; de outro, as manifestações do riso por outra pessoas. Poderia ser feita aqui uma distinção tradicional e falar-se da "teoria e da prática do riso". Em relação ao primeiro aspecto, é relativamente fácil reunir os textos mais ou menos teóricos e normativos que nos fornecem tanto atitudes em relação ao riso como recomendações de como se rir. Observa-se que, assim como a etiqueta à mesa, há uma série inteira de textos sobre os modos de rir. Talvez estejamos bem mais munidos em relação a esses textos.

 o problema da prática do riso é mais complexo. Aqui, novamente, penso que nos deparamos com dois subconjuntos. De um lado, há os textos que mencionam, de forma muito limitada e ingênua, a presença e as formas do riso - por exemplo, em uma crônica em que se vê alguém começando a rir. Experimentar e assimilar todos esses exemplos do riso é importante para uma investigação desta natureza, mas percebe-se o trabalho que isso requer. Por outro lado, há o enorme campo do que geralmente é descrito como cômico. Aqui há uma dificuldade bem diferente, porque é necessário transformar uma análise dos problemas do cômico em uma análise equivalente do riso, sem, naturalmente, perder de vista o que é peculiar ao cômico ou aos textos nos quais é expresso. Em outra palavras, deve-se distinguir os textos nos quais o riso é julgado daqueles cujo objetivo é nos fazer rir. Eles são muito diferentes. E aqui encontramos um dos grandes problemas de nossa pesquisa - a heterogeneidade dos documentos, questões e conceitos. Temos que descobrir se há uma noção unificadora por trás de todos. Devo acrescentar que aqui nos deparamos com uma história dos valores e das atitudes mentais por um lado e, por outro, com uma história das representações literárias e artísticas: uma história do riso e do fazer rir.

 Portanto, temos inicialmente um grande problema: o dos complexos encadeamentos entre estes quatro domínios - valores, pensamentos, práticas e estéticas do riso. Para acrescentar mais uma observação preliminar: embora haja numerosas categorias de riso e o jogo de palavras não seja a categoria mais importante para provocá-lo, é preciso acentuar a importância das palavras e da linguagem. Felizmente, aqui o historiador está mais bem abastecido. Há algum tempo já sabemos usar as perspectivas da linguagem, do vocabulário e da semântica, embora o número de estudos sérios e inteligentes nessa área ainda seja muito pequeno. Finalmente, há o problema do meio linguístico, familiar aos medievalistas: temos que conduzir nossa pesquisa no domínio do latim e no das línguas vernáculas. Penso que essa segunda investigação é ainda mais importante, pois, por diversas razões interessantes, as pessoas riem melhor no vernáculo que em latim. Se são a sua difusão, heterogeneidade e fragmentação que constituem um dos maiores impedimentos ao estudo do assunto, isso, não obstante, permite-nos tocar em muitos temas fundamentais do período em questão.

(continua...)

O Imaginário... As cidades


O imaginário


 Entende-se por imaginário um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo.

 A ideia do imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um conjunto dotado de relativa coerência e articulação. A referência de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a ideia de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção é social e histórica.

 O historiador Bronislaw Baczko, que assim define o imaginário, atribui a esse conceito características de historicidade e abrangência. O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem representações para conferir sentido real. Essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos performances. O imaginário comporta crenças, mitos ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.

O filósofo Coenelius Castoriadis, vai mais além nessa reflexão sobre a natureza do imaginário: para além da sua dimensão histórica, o imaginário é capacidade humana para representação do mundo com que lhe confere sentido ontológico. É própria do ser humano essa habilidade de criação/recriação do real, formando uma espécie de magma de sentido ou energia criadora. A essa condição herdada de construção imaginária do real, Castoriandis dá o nome de imaginário radical, fonte de todo o simbólico. Já à atividade social que atribui sentido ao mundo, construídas a partir de condições históricas e apoiada naquela energia criadora, o autor dá o nome de imaginário efetivo. Este é sempre um imaginário simbólico e opera segundo lógicas próprias, conferindo existência significada ao real.

Vide: História e história cultural
Sandra Jatahy Pesavento
Ed. Autêntica 

Clio, a eterna deusa da história


  No Monte Parnasso, morada das Musas, uma delas se destaca. Fisionomia serena, olhar franco, beleza incomparável. Nas mãos, o estilete da descrita, a trombeta da fama. Seu nome é Clio, a musa da história. Neste tempo sem tempo que é o tempo do mito, as musas, esses seres divinos, filhos de Zeus e de Mnemósine, a Memória, tem o dom de dar existência àquilo que cantam. E, no Monte Parnasso, cremos que Clio era uma filha dileta entre as Musas, pois partilhava com sua mãe o mesmo campo do passado e a mesma tarefa de fazer lembrar.Talvez, até, Clio superasse Mnemósine, uma vez que, com o estilete da escrita, fixava em narrativa aquilo que cantava e a trombeta da fama conferia notoriedade ao que celebrava.

 No tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre os fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado o que deve ser lembrado e celebrado.


                                                          Clio, a deusa da história