sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Indignação ética e o sujeito

"E cada vez mais, as pessoas
confundem a dignidade humana
como lugar social"


A experiência fundante do que a Teologia da Libertação chamou de momento primeiro é a indignação ética. Por mais graves que sejam os problemas sociais, nem todas as pessoas sentem essa indignação ética. Há aquelas que não sentem esta indignação porque nem mais enxergam as pessoas vitimadas. Ou porque simplesmente as excluíram do seu campo de sentido/visão, ou porque não mais consideram pessoas. Há também aquelas que se sentem incomodadas com a visão do sofrimento das vítimas, mas o incômodo não chega à indignação ética e com o tempo o esquecem.

  O que acontece quando alguém sente esta indignação ética?E claro que é impossível responder plenamente a esta pergunta. Cada experiência é diferente da outra e pressupõe mundos e histórias das pessoas envolvidas. Contudo, queremos pontuar dois aspectos para a nossa reflexão.

  Para que uma pessoa possa se indignar frente a uma situação em que alguém está sendo tratado ou reduzido a uma condição sub-humana é preciso que aquela pessoa reconheça a humanidade desta. Sem este reconhecimento não há indignação ética, pois ninguém se indigna frente a uma situação em que um ser sub-humano está sendo tratado como um sub-humano. Muitas pessoas não se indignam frente a estas situações porque elas não conseguem "ver" e reconhecer a humanidade destas pessoas.

  Esta dificuldade em reconhecer a humanidade das vítimas destas situações tem a ver com a dificuldade em diferenciar o lugar e o papel sociais destas pessoas da sua dignidade como ser humano. E cada vez mais, as pessoas confundem dignidade humana com lugar social. Na cultura de consumo, o padrão de consumo é o fator determinante na definição da identidade e do reconhecimento da dignidade dos indivíduos. Os não consumidores são vistos como não pessoas. Quanto mais baixo o lugar que ocupa na hierarquia sociocultural, menos humano.

 Na indignação ética há o reconhecimento da humanidade das pessoas para além do papel ou lugar social. As pessoas são reconhecidas na gratuidade, isto é, independentemente da sua capacidade de consumo, condição social, sexual, étnica, religiosa, etc. Em caso extremo, por exemplo, se na nossa sociedade encontramos um indivíduo pobre, negra, mulher, lésbica, prostituta, aidética, deficiente físico, feia e velha, e ainda conseguimos ver um ser humano com a sua dignidade fundamental, temos realmente uma experiência espiritual da graça (reconhecimento na pura gratuidade, para além de toda convenção social) e de fé (ver o que é invisível aos "olhos do mundo").

  Na nossa sociedade, marcada pela busca desenfreada do sucesso como forma de "justificar" a existência humana, este reconhecimento gratuito entre sujeitos na relação sujeito-sujeito, "face a face", é uma verdadeira experiência espiritual da graça e da justificação pela fé. É uma experiência que justifica a existência não só da pessoa oprimida, mas também a da pessoa que sente a indignação. Razão pela qual esta experiência é percebida como libertadora tanto para quem sente a indignação, quanto para aquela que é vítima e é reconhecida como pessoa. É por isso que a experiência da indignação ética que leva ao compromisso social foi e deve ser interpretada como uma verdadeira experiência espiritual.

  Um segundo aspecto importante é o seu horizonte de desejo utópico que é pressuposto na indignação ética. É o horizonte utópico de uma realidade, onde as pessoas são reconhecidas e respeitadas independentemente da sua condição social que nos faz ver a situação atual como eticamente inaceitável e como uma situação que deve ser transformada. Sem este desejo de um mundo distinto, não poderíamos sentir a indignação. Ao mesmo tempo, é a indignação que nos faz "ver" este horizonte utópico.

  Em um primeiro momento, este horizonte nos aparece como uma imaginação utópica, isto é, como uma imaginação de um mundo liberto de todas as formas de opressão e de objetificação do ser humano. Depois, esta imaginação é trabalhada e se nos apresenta como um "projeto" de uma nova sociedade. Algumas vezes, em ambientes cristãos, como "projeto de Deus".

  Na medida que este horizonte (imaginativo ou "projeto utópico") é o que nos permite compreender a realidade atual como inaceitável e modificável e é, ao mesmo tempo, objeto de desejo, passamos a acreditar - porque desejamos - que ele é factível, realizável plenamente no interior da história. Do desejo de que ele seja possível, passamos a acreditar que é possível. E, algumas vezes, o desejo nos leva a crer que não somente é possível, mas que também é inevitável.

  E, ao pensá-lo realizável, nos enfrentamos com a necessidade de um sujeito que realize ou "construa" este horizonte/projeto no interior da história. Aqui aparece a utilização de conceitos como "sujeito histórico", "sujeitos da história", "protagonista da história".

  Estes dois aspectos da indignação ética, aspectos complementares e intrinsecamente relacionados, nos apresentam duas noções ou facetas do sujeito: a) o sujeito que é reconhecido e se reconhece mutuamente para além de todos os papéis ou lugares sociais; b) sujeito construtor ou realizador em plenitude do horizonte utópico ou do projeto de uma sociedade totalmente nova, a nova terra e o novo ser humano.

Fonte: Sujeitos e sociedades complexas - Ed. Vozes
 Jung Mo Sung

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A esquerda evangélica

Minoritários e ainda pouco articulados, os evangélicos progressistas estão,no entanto, ativos no Brasil. E substituem a Teologia da Prosperidade da direita pela Missão Integral, que defende a democracia e pratica a solidariedade.


Por Ricardo Muniz


O meio evangélico é estigmatizado politicamente como um bloco homogêneo de direita - a despeito da prodigiosa cissiparidade que resulta da fragmentação em centenas de organizações eclesiásticas. Mas há, sim, saiba-se, evangélicos que militam na esquerda. Talvez o exemplo de maior visibilidade seja o da ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, da assembleia de Deus.

 A ressalva é que tais seres políticos são, de fato, relativamente raros e precariamente articulados. Essa fragilidade da esquerda evangélica é resultado de fatores históricos e teológicos. Durante a época da ditadura militar, em uma trágica paródia do "irmão vota em irmão", que ainda caracteriza o voto de cabresto em tantas igrejas, imperou o "irmão entrega irmão". Trata-se de uma história de expurgos, perseguições e até desaparecimentos que vem sendo aos poucos resgatada, mas ainda não foi devidamente apresentada ao grande público.

 Porém, o esmagamento de toda uma geração de "crentes" que militavam na esquerda não explica, por si só, o impacto reduzido desse grupo. É a teologia e seu reflexo político que fornece a chave tanto para compreender tal alcance limitado quanto para vislumbrar possibilidades de desenvolvimento.

 A ideologia hegemônica no meio evangélico hoje é a Teologia da Prosperidade, uma ênfase no aqui e agora que põe em segundo plano até mesmo temas centrais do discurso protestante histórico - arrependimento de pecados, paz com Deus pelo sacrifício de Cristo na cruz.

 Doutrina que ganhou impulso no Brasil na década de 1990, justamente quando o "rebanho de esquerda" tentava se ajuntar, a Teologia da Prosperidade prega que os cristãos, por serem filhos de Deus, têm direito a bens materiais e status. E que as igrejas devem ocupar agressivamente espaços na mídia e na vida política para assegurar a propagação desse evangelho, continuar amealhando fiéis contribuintes e, de quebra, garantir algum tipo de apoio ou retaguarda oficial para seus interesses institucionais.

 Em outra paródia, desta vez daquilo que o sociólogo Max Weber definiu no inicio do século passado como a "ética protestante" (trabalho duro e vida sem luxo nem lazer como marcas do fiel), o pressuposto dessa corrente é que a fé é demonstrada pela capacidade de consumo, saldo na conta bancária e números de carros importados na garagem.

 De maneira até agressiva, de preferência em pregações via televisão e rádio, destaca a possibilidade, exclusivamente pela fé pessoal, de resolução imediata de problemas e de ter uma vida sempre saudável. A aplicação política desse sermão é que tudo se resolve no âmbito do indivíduo - do "indivíduo religioso". O que vale é o passo de fé mágica de quem doa à igreja para ser recompensado por um Deus que paga dividendos. É como uma transição de modelo: de 'industrial/protestante' para 'financista/neopentecostal'.

 Quando iniciativas como o Movimento Evangélico Progressista (MEP) surgiram, praticamente na mesma época, convidando para uma prática política de solidariedade e justiça, se depararam com uma multidão de crentes hipnotizados pela Teologia da Prosperidade.

Espiritualidade integral

O MEP começou a ser gestado na segunda metade dos anos 1980 como reação de evangélicos que não se viam representados pela bancada evangélica na Assembleia Nacional Constituinte. Formalmente lançado em 1990, está baseado na chamada Teologia de Missão Integral, pela qual a evangelização e a responsabilidade social são inseparáveis.
 Seu lema, definido no Congresso Internacional de Evangelização de 1974, é: "O Evangelho todo para o homem todo, para todos os homens". Mais de 2.300 líderes evangélicos de 150 países assinaram o Pacto de Lausanne, que detalha em 15 pontos este tema.

 "Só existe uma espiritualidade, a que envolve o ser humano; uma espiritualidade parcial não é espiritualidade, é faz-de-conta de um clube religioso", resume Geter Borges Sousa, secretário executivo do MEP para o período 2003-2007 e membro de Igreja Batista. "Espiritualidade integral é atender às demandas do corpo e da alma, que não podem ser dissociadas".

 A Missão Integral também dá alicerce teológico a uma firme e realista opção democrática. "A democracia é a forma mais sábia de governo, porque leva a sério a Criação (a dignidade do homem com imagem de Deus) e a Queda (a depravação do homem pela separação de Deus). A capacidade humana para a justiça torna a democracia possível; a tendência humana para a injustiça a torna necessária", escreve o teólogo inglês Jonh Stott.

 "[Os partidários da Missão Integral] possuem uma perspectiva teológica conservadora, mantendo as ênfases tradicionais do mundo evangélico na Bíblia, na oração, na conversão pessoal, na preocupação missionária. São politicamente articulados e estão plenamente integrados em suas igrejas, de forma que se propõem uma dupla militância: na igreja e na sociedade, por meio dos partidos e movimentos sociais", explica em sua tese de mestrado o pastor da Igreja Metodista Livre e historiador Ziel Machado, secretário regional da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos no América Latina.

 No meio evangélico, um dos líderes mais conhecidos por sua clara postura de esquerda é Ariovaldo Ramos, pastor da Comunidade Cristã Reformada (CCR), ex-presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEvB, uma tentativa frustrada de representar o mosaico evangélico no país) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). A seguir alguns trechos de depoimento de Ramos que sintetizam a crítica e o posicionamento da esquerda evangélica:

 "A gente reduziu o evangelho a uma questão de salvação pessoal, que não tem nenhuma implicação com o próximo, fica só no relacionamento particular entre o camarada e Deus. Um relacionamento que foi involuindo. No começo, o indivíduo ainda se convertia e virava servo de Deus. Era um negócio intimista, mas ela queria ser santo, queria fazer a vontade de Deus, reconhecia que tinha sido perdoado por seus pecados. Mas aí a coisa involuiu. Continua sendo particular, só que, ao invés de o indivíduo ser servo de Deus, Deus é quem passou a ser servo dele. Ele quer ser abençoado, vem à reunião para buscar sua benção. O santo do passado não incluía o próximo em sua salvação, mas, por querer ser servo de Deus, acabava amando o próximo. Este agora nem inclui nem ama. Não tem a menor ideia de que o evangelho é a recuperação do conceito de humanidade. E muito menos de qual é o conceito de humanidade nas Escrituras".

 "A minha base de fé é que o evangelho é a recuperação do conceito de humanidade; que o planeta, a vida são dons para a humanidade, e não para determinados indivíduos; e que qualquer movimento na História que segregue seres humanos é um movimento contra Deus. Para mim, nosso papel é corrigir isso. Passa pela questão econômica, logo de saída. Passa pelo ataque à pobreza, pela recuperação da dignidade do ser humano. É necessário apoiar todos os movimentos que tentam corrigir tais anomalias".

O que Jesus viveu e ensinou

" É que o camarada tem o direito de pensar diferente de mim, ele pode ser contra a reforma agrária, ser contra as cotas: isso é um direito dele. Mas, se nós nos sentarmos para conversar, de cristão para cristão, considerando o que Jesus Cristo viveu, fez e ensinou, eu acho que ele vai ter dificuldade de se explicar. É muito difícil um cristão um cristão explicar por que que é contra a redistribuição das terras quando o profeta Isaías diz: 'Ai dos que juntam casa sobre casa e terra sobre terra até serem os únicos moradores do lugar'. O que isso significa? Que tem limite. Eu não posso ter tudo que quero. Eu só posso ter aquilo que não imponha ao próximo viver embaixo da ponte, em casas de papelão e de madeira. Tem de ter limite".

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil/ outubro 2007

Para uma melhor compreensão da Missão Integral, leia o livro
Missão Integral - em busca de uma identidade evangélica, Ricardo Gondim
Editora - Fonte Editorial

sábado, 19 de novembro de 2011

Mundo fabricado


Mundo científico e técnico


 A modernidade é uma mistura, ou uma conjunção, de ideias e de realizações sociais. Entre estas últimas, as invenções científicas, e as técnicas que delas decorrem, ao mesmo tempo transformaram o mundo vivido pelos homens e modificaram profundamente as imagens e as representações que tinham de si mesmos e de seu lugar na natureza. Desta última, eles podem ter a sensação de que se distanciam cada vez mais, ou de que ela se distancia, em benefício de um mundo cada vez mais artificial, cada vez mais fabricado. Nos primórdios da modernidade - na verdade durante quase dois séculos - dominou a ideia de que a grandeza do homem reside nesse domínio indefinido da natureza - a natureza exterior  e a sua; todo domínio suplementar é considerado então um progresso, o qual aliás não tem nenhuma razão para se deter. A fatalidade evocada acima, todas as fatalidades serão um dia vencidas pela ciência: era essa a esperança dessa "religião do progresso".

 Desde há muito tempo,essas perspectivas de vitória sobre a necessidade que envolve a condição humana parecem se distanciar, pelo manos a curto e médio prazo. No entanto, uma sociedade generalizada de consumo e de bem-estar sem precedente instalou-se ou se instala em todos os países que seguem esse caminho da modernidade científica, técnica, econômica - a fortiori, podem-se explorar recursos naturais consideráveis em seu território (é o caso de todos que possuem petróleo). Esse bem estar nesta vida terrena parece, pelo menos superficialmente, afastar de muitos a preocupação - ou o temor - quanto a um outro mundo por vir, e nesse sentido ele contribui para a secularização dos espíritos: "Deus", ou o que se chama por esse nome, torna-se inútil.

 Além de uma idade em que as ciências e técnicas invadem o imaginário e a vida cotidiana dos homens, a modernidade nutre um ideal não dito, mas onipresente: adaptar em toda a parte os meios aos fins para obter os melhores resultados com o máximo de eficácia, racionalizar as estruturas da vida coletiva, ou organizar racionalmente as grandes esferas de existência e de produção da sociedade (escola, administração, saúde, economia...). Assim, na vida social, a intervenção do direito torna-se onipresente e tende em toda parte a substituir as relações inter-humanas diretas. Não é de espantar que nessas condições a "burocracia" e o anonimato progridam no mesmo ritmo.

Fonte: A lei de Deus contra a liberdade dos homens 
JEAN-LOUIS SCHLEGEL

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Cristianismo político no Brasil

Dom Hélder Câmara




Para os jovens, as destinatárias da salvação passavam a ser as massas, cuja
plena realização
estava obstruída
pelas estruturas 
sociais




"No Brasil, até 1964, uns 90% dos militantes políticos ou eram católicos ou tinham pai e mãe católicos tinham saído do cristianismo". Herbert José de Souza - o Betinho, principal líder da esquerda católica até 1965 - relembrou nessa frase seus tempos de militância, constatando que a vida política brasileira não pode ser dissociada do cristianismo, particularmente do catolicismo. A partir dos anos 50-60, surgiria a esquerda cristã cuja história merece ser conhecida.

Betinho
A Juventude Universitária Católica (JUC) era um setor especializado da Ação Católica, apostolados de leigos promovido pela alta hierarquia da Igreja Católica. Só por volta de 1950 a JUC tornou-se um movimento social significativo. Então ele se movia no universo ideológico do catolicismo tradicional. Com o tempo, os jovens da JUC passaram a questionar aspectos das ideias dominantes na igreja, como a passividade política diante da ordem estabelecida, num contexto de convivência universitária com outras correntes de pensamento. Eles eram influenciados pela discussão teórica no interior da própria igreja, em particular pelas obras de Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Pierre Teilhard de Chardin. Ficaram marcados pelo pontificado progressista do papa João XXIII a partir de 1958, e pelo Concílio Vaticano II.
  
 Ademais, eles conviviam com as desigualdades gritantes da sociedade brasileira e com o ascenso na mobilização política de trabalhadores urbanos e rurais, numa dada evolução da conjuntura política nos anos liberais do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), seguidos do breve governo de Jânio Quadros (1961), cuja renúncia levaria o trabalhista João Goulart à presidência da República (1961-1964).

No plano internacional, estavam em curso inúmeras revoluções da libertação nacional, marcadas pelo ideário socialista ou terceiro-mundista, por exemplo a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962 e outras. Além disso, o modelo soviético de socialismo era contestado, o que também se fazia sentir no plano interno: começavam a surgir novas referências na esquerda - inclusive de cristãos - , que ameaçava a hegemonia do pró-soviético e clandestino Partido Comunista Brasileiro.

Especialmente para setores cristãos jovens, destinatárias da salvação passavam a ser as massas humanas, cuja plena realização estaria obstruídas pelas estruturas econômicas, sociais e políticas existentes, as quais urgia modificar. Para isso, seria preciso ir além da hierarquia eclesiástica, o que abria um campo de tensão com a igreja.

 Aos poucos, o humanismo da  JUC foi deixando de ser apenas cristão, vinha mesclado com análise de inspiração marxista. Questionada pelo episcopado e impulsionada por um movimento social que já não cabia nos limites da igreja, a ala mais à esquerda da JUC criaria a Ação Popular (AP), em 1962, associada a outras forças, como setores protestantes e estudantes independentes de esquerda. Especialmente a ordem dos dominicanos foi influenciada pela militância na JUC naquele período, incluindo alguns frades que, depois de 1964, ligaram-se ao esquema guerrilheiro organizado pelo líder comunista Carlos Marighella, fundador da Ação Libertadora Nacional, em 1967.

 A Ação Popular estava implantada principalmente no movimento estudantil, no qual, manteve a presidência da União Nacional dos Estudantes e de outras entidades nos anos 60. A pretensão era criar no Brasil uma terceira via, socialista e democrática, ao mundo polarizado da Guerra Fria.

 Além do trabalho com estudantes,a AP pretendia lançar-se à organização política de operários e camponeses. Entre estes últimos, conseguiu certa inserção, em especial por meio da participação no Movimento de Educação de Base da Igreja Católica. Paralelamente, a partir de Recife, desenvolveu-se o sistema revolucionário de alfabetização do educador católico Paulo Freire, sistema do qual participaram também membros da AP.

Paulo Freire
A AP obteve certo êxito no processo de organização de sindicatos rurais, promovido pela Superintendência para a Reforma Agrária. Alguns de seus líderes participaram da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, bem como do alto escalão do Ministério da Educação. Ou seja, embora com discurso e postura à esquerda do governo, a AP integrou-se ao esforço reformista da época,a partir da ação do Estado, junto ao qual reivindicava a implementação das chamadas reformas de base  para obter melhor distribuição de riquezas e direitos sociais.
  Com o golpe de 1964, lideranças da AP foram perseguidas e presas. Mesmo assim, em parte sob a cobertura de setores da igreja, a organização buscou tomar iniciativas para a resistência. Os dirigentes passaram a viver na clandestinidade, alguns saíram do país, caso de José Serra, Betinho, Aldo Arantes e Paulo Writght. Depois de 1964, a AP enviou alguns militantes a Cuba e outros à China, que vivia a revolução cultural proletária. Foram-se se formando duas alas no interior da AP: a Corrente 1, que propunha para o Brasil uma revolução inspirada no modelo chinês; e a Corrente 2, resistente a maoização da AP e considerada foquista por seus adversários. A luta interna culminou com a expulsão dos adeptos da Corrente 2, em 1968: estava definida a adesão da AP ao maoísmo. Os expulsos de AP juntaram-se a outros segmentos esparsos de esquerda para constituir o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, que aderiu à guerrilha urbana e logo viria a dissolver-se em 1971-1972.

 Sob inspiração da revolução cultural proletária chinesa, iniciou-se em 1967-68 a "integração na produção" ou "movimento de prolitarização" dos militantes de origem pequeno-burguesa, que constituíam vasta maioria na AP. Eles foram convencidos a realizar trabalho braçal no campo ou nas cidades. Agora com uma formulação ideológica, recolocava-se a experiência dos padres operários, atuantes especialmente na Fança nos anos 40-50. Apesar de muitos de seus militantes ainda se considerarem cristãos, essa condição não era assumida pela organização, que, em 1971, passou a denominar-se Ação Popular Marxista-Leninista (APML).

Nesse processo, em 1973, após o fim da desgastante experiência de proletarização dos militantes,a maioria integrou-se ao Partido Comunista do Brasil, que também era vinculado à China. Contudo, uma minoria reorganizou a APML. Apesar da morte ou da prisão de vários de seus dirigentes, ela sobreviveria até o início dos anos 80, quando grande parte de seus quadros integrou-se ao Partido dos Trabalhadores. Nele se reencontraram outros militantes dos setores progressistas da Igreja Católica, cujas origens remontavam também à JUC, e como os quais o pessoal da APLM jamais haviam perdido contato. Alguns ex-integrantes ou simpatizantes da JUC, e mais tarde da AP, viriam a ocupar postos importantes no governo federal de Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira.

É sabido que a maioria da Igreja Católica apoiou o golpe de 1964. Mas os rumos do regime militar, o desrespeito aos direitos humanos e o trabalho pastoral junto aos pobres viriam a colocar setores significativos da própria Igreja no oposição, especialmente a partir da edição do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, que escancarava o caráter ditatorial do governo. Naquele mesmo ano, em agosto, fora realizada em Medellín, na Colômbia, a Conferência do Episcopado Latino-Americano, na qual se esboçaram a opção preferencial pelos pobres e a defesa dos direitos humanos, constantemente violados pelas ditaduras que dominavam a região.

Matriz romântica

  Estavam dadas as bases para o surgimento da Teologia da Libertação, título também do famoso livro do peruano Gustavo Gutiérrez, de 1971. Ele declarou que, enquanto o redigia, em 1969, "parou na metade e sentiu necessidade de vir ao Brasil para discutir certos detalhes e entrevistar antigos militantes da JUC, sobretudo aqueles do período 1960-1963"

Livro de G. Gutiérrez
 A Teologia da Libertação, associadas às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a partir dos anos 70, encontrava suas origens na velha JUC - e também na Juventude Estudantl Católica (JEC), na Juventude Operária Católica (JOC), na Juventude Agrária Católica (JAC) e na Juventude Independente Católica (JIC), todas ligadas à Ação Católica Brasileira e fornecedoras de quadros para AP na década de 60.

 A Teologia da Libertação faz uso de instrumental teórico marxista, mas suas fontes principais estão em vertentes do próprio pensamento social da Igreja e na experiência vivida com os pobres da América Latina, marcando um certo tipo de romantismo revolucionário que não se confunde com o marxismo, embora seja possível aproximá-lo de suas vertentes românticas.

  Já argumentei em outro lugar que aquilo que permite explicar o trânsito da AP pelo cristianismo, depois pelas ideias de Che Guevara e de Mao Tse-Tung, é a vinculação a uma certa matriz romântica, que assumiu formas distintas na ação política e no pensamento de seus integrantes em diferentes conjunturas, basicamente, a comunhão com os pobres da terra, na contra-mão da modernidade capitalista. Em boa medida,a Teologia da Libertação é herdeira do romantismo revolucionário que deu origem à AP.

 O Brasil foi o país em que os adeptos da Teologia da Libertação conquistaram maior peso no seio da Igreja Católica a partir dos anos 70, o que talvez se explique por fatos como a crescente participação dos leigos na vida católica, a influência do catolicismo francês que vinha dos anos 40-50, o fato de vários setores de oposição à ditadura encontrarem na Igreja seu último refúgio, a rapidez e a radicalidade da modernização autoritária no Brasil, quando se desenvolvia um "capitalismo selvagem" que colocava setores populares das bases da Igreja em situação precária no campo e na periferia das grandes cidades. Ademais, a derrota do enfrentamento aberto contra a ditadura nos anos 60 e início dos 70 colocava a necessidade do lento trabalho no interior das instituições, com a valorização da experiência popular e democrática.

Leonardo Boff
 Sob o impulso de bravos defensores dos direitos humanos, como Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo a partir de 1970, dos teólogos da Libertação, como Leonardo Boff, e da própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sob a direção de Dom Ivo Lorscheiter, setores da Igreja passaram a constituir o principal inimigo da ditadura - notadamente a figura de Dom Helder Câmara - e tornaram-se agentes do processo de redemocratização, já irreversível no final da década de 70.
Desse ambiente, surgiu uma nova atuação político-partidária de setores da Igreja. Sobretudo as Comunidades Eclesiais de Base tiveram forte presença nos novos movimentos sociais do final dos anos 70 e converteram-se numa das bases do tripé que daria vida ao Parido dos Trabalhadores (PT), junto com o novo sindicalismo e com setores da intelectualidade de esquerda, em grande parte militante ou ex-militante de pequenos grupos marxistas clandestinos. Assim, o PT repetia e potencializava um fenômeno do início dos anos 60, agora em proporção maior: a exemplo da antiga AP, o partido surgia com forte influência católica de esquerda, que ainda subsiste em nossos dias, embora esmaecida.

  A Teologia da Libertação, as CEBs e a esquerda católica já não são mais o que foram, enfrentam crise profunda, confrontando-se com a linha cada vez mais tradicionalista do Vaticano, em sintonia com a onda política conservadora que tem dominado o cenário internacional a partir dos anos 80. Mas sua herança continua, não só dentro da Igreja. Por exemplo, no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que nasceu da Pastoral da Terra e conserva até hoje uma forte ligação com sua origem católica de esquerda, notável na sua "mística" e forma de organização.



Fonte: revista História Viva - Temas brasileiros
 "Esquerda no Brasil, uma história nas sombras"
Edição número 5

István Mészáros: direto

"O sistema que nós temos hoje
está de fato destruindo a 
humanidade,
destruindo a natureza,
destruindo os recursos naturais,
porque se baseia no crescimento
a todo preço. Entretanto,
como penosas experiências históricas
nos ensinaram, nosso problema não é 
simplesmente 'a derrota do capitalismo'"


István Mészáros - nasceu em Budapeste, Hungria, em 1930. Graduou-se em filosofia na Universidade de Budapeste, onde foi assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética. Deixou a Hungria após o levante de outubro de 1956 e exilou-se na Itália, onde trabalhou na Universidade de Turim; posteriormente ministrou aulas nas universidades de Londres (Inglaterra), St. Andrews (Escócia) e Sussex (Inglaterra), além de na Universidade Autônoma do México e na Universidade de York (Canadá). Ao retornar à Universidade de Sussex, em 1991, recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia. É conhecido como um dos principais intelectuais marxistas contemporâneos.
E autor profícuo de vários livros, entre eles "Filosofia, ideologia e ciência social", pela Editora Boitempo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Infância Despedaçada

Efetivamente, alguns sinais não enganam. Ao reaparecimento da mendicância, do desemprego, das sopas populares, das "classes perigosas" nos bairros dos subúrbios, veio acrescentar-se - como prova suplementar da desumanização que provoca, neste fim de século, a globalização econômica - a figura social de criança trabalhadora.

Já no século XIX, o agravamento das desigualdades se refletia particularmente na exploração das crianças, cujo emprego se generalizara. Descrevendo, em 1840, num célebre relatório, o estado dos meninos operários na França, quando a duração do trabalho era de 14 horas por dia, Louis Villermé evocara "essa multidão de crianças, das quais algumas mal têm sete anos, magras, esquálidas, cobertas de farrapos, que vão descalças para as manufaturas, com chuva e lama, pálidas, inquietas, oferecendo uma aparência de miséria, de sofrimento e abatimento".

Longe de comover-se com tal situação - que romancistas como Charles Dickens, Victor Hugo, Hector Malot, Jules Vallès, Émile Zola e Edmondo de Amicis também denunciaram - certos liberais a consideravam como um "mal necessário": "Essa miséria, escrevia um deles, oferece um espetáculo salutar para toda uma parte das classes menos felizes que permaneceu sã; ela é feita para encher de espanto; ela as exorta para as virtudes difíceis de que elas precisam para chegar a uma condição melhor"

Diante desse cinismo, como não compreender a revolta, por exemplo, de Karl Marx, que no seu Manifesto do partido comunista, em 1848, denunciará " a grande indústria, que destrói todo laço de família do proletário e transforma as crianças em simples artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho", e exigirá a "abolição do trabalho infantil nas fábricas, tal como se faz hoje"?
A história mostrou que a abolição progressiva do trabalho infantil e a instauração do ensino obrigatório foram, na Europa Ocidental e na América do Norte, as condições indispensáveis para o desenvolvimento. Entretanto, só em 1990, ratificada pela ONU -com a exceção dos Estados Unidos- a Convenção sobre os direitos da criança entrou em vigor e fixou, como desejava a Organização Internacional de Trabalho (OIT) desde 1973, uma idade mínima para a entrada no mundo do trabalho.

 Apesar disso, estima-se que cerce de 250 milhões de crianças trabalham, das quais as mais jovens não tem cinco anos... Se o maior número delas se encontram nos países pobres do Sul, muitas são exploradas nos Estados do Norte. No conjunto da União Européia, seu número passaria de 2 milhões, especialmente nas zonas afetadas pelas reestruturações ultraliberais como o Reino Unido. Mas, mesmo em países considerados "socialmente avançados" - Dinamarca, Países Baixos... - o fenômeno da criança trabalhadora reapareceu. "Também na França, afirma um perito do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Várias dezenas de milhares de crianças exercem um emprego assalariado a pretexto de aprendizagem, e 59% dos aprendizes trabalham mais 40 horas por semana, e às vezes 60".

 Em escala planetária, o número de crianças trabalhadoras não pára de crescer. Em certos países, como o Paquistão, é um flagelo de massa; por dezenas de milhões, crianças de menos de seis anos são exploradas.
Na América Latina, uma entre cinco crianças trabalha; na África, uma entre três; na Ásia, uma entre duas! O primeiro setor que emprega crianças é a agricultura. Pratica-se, muitas vezes, a servidão através das dívidas: as crianças devem pagar com seu labor a dívida contraída pelos pais ou avôs. Escravos de fato, essas crianças nunca deixarão essa condição; nela passarão a vida e se casarão, dando nascimento a novos escravos...

Vide: Guerras do século XXI - novos temores e novas ameaças
Ignácio Ramonet
Ed. Vozes

                                                        Trabalho Terceiro Mundo: criança esperança

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O Riso na Idade Média

Por Jacques Le Goff

Quando começo a apresentar minha pesquisa sobre o riso na Idade Média, sinto certa apreensão. Afinal de contas, Voltaire não escreveu que "as pessoas que buscam causas metafísicas para o riso não são alegres"? Porém, não estou buscando causas metafísicas para o riso. Na verdade, tento resgatar, sobretudo em relação a Idade Média, o que a sociedade achava do riso, as posições teóricas que adotou e como o riso, em suas várias formas, funcionou na sociedade medieval.
 Eu gostaria de convencer o leitor de que o riso é um assunto sobre o qual vale a pena refletir e, em particular, estudar em termos históricos. Espero confirmar uma observação inicial e muito genérica, mas que não deve ser negligenciada: o riso é um fenômeno cultural. De acordo com a sociedade e a época, as atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que rir e outra de quem se rir, e também, muitas vezes, da pessoa ou das pessoas com que se rir. É uma prática social com seus próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco. Eu diria até mesmo que este é o único ponto interessante abordado por Bergson. Ele salienta essa dimensão social, por vezes de modo especialmente feliz,e foi nessa área que Freud percebeu uma convergência de suas próprias teorias com a ideia de Bergson. Como fenômeno cultural e social, o riso deve ter uma história. Por isso me sinto compelido a levar o leitor para o lado sério do riso - algo que eu conheço bem. Em 1983, o americano John Morreall publicou seu interessante livro Taking laughter seriously (Levando o riso a sério), e cinco anos mais tarde o italiano F. Ceccarelli publicou o seu estudo Sorriso e riso. Depois de nos lembrar que toda explicação do ridículo simplesmente mata o riso e que a morte do riso deveria nos alarmar, porque ele é uma fonte de prazer, o autor embarca numa longa investigação e no final conclui: "É muito difícil não admitir a importância de sorrir e rir, de qualquer ponto de vista." Ele acrescenta, de maneira muito hábil, que a facilidade com que muita gente considera fútil o estudo do riso e do sorriso é apenas parte de seu problema e de sua função. Concluirei citando o autor russo Alexander Herzen, que a mais de um século observou: "Seria muito interessante escrever a história do riso". O que eu gostaria de fazer aqui é esboçar os problemas que surgem quando se constrói a história do riso no Ocidente medieval.
  
Por julgar que isso possa esclarecer minhas premissas e, ao mesmo tempo, responder pelas deficiências e lacunas de minha abordagem, começarei delineando como esse tema surgiu em minha pesquisa e descrevendo minhas motivações e objetivos originais. Depois, enumerarei os problemas encontrados no curso de minha investigação, problemas esses que definem as premissas. Devo acrescentar que meu trabalho ainda está em fase exploratória. O que não deve ser tomado como um captatio benevolentiae. Há alguns anos, meus amigos e eu dedicamos um seminário a esse assunto e muitos dos participantes já fizeram contribuições muito interessantes, tanto no nível teórico quanto no nível documental. Finalmente, como um exemplo, tratarei de um ponto particular que eu pude, até agora, estudar com certa profundidade, o riso dos monges, risus monasticus, na Alta Idade Média. Também sugerirei algumas diretrizes para uma história da evolução das atitudes em relação ao riso e as forma do riso, assim como para o lugar do riso no sociedade medieval, do fim da Antiguidade ao Renascimento.


FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DE MINHA PESQUISA

Na minha opinião, um estudo da história do riso tem dois aspectos. As etapas, o método, a formulação do problema e, mais importante, a documentação são diferentes para cada um - de um lado, as atitudes em relação ao riso; de outro, as manifestações do riso por outra pessoas. Poderia ser feita aqui uma distinção tradicional e falar-se da "teoria e da prática do riso". Em relação ao primeiro aspecto, é relativamente fácil reunir os textos mais ou menos teóricos e normativos que nos fornecem tanto atitudes em relação ao riso como recomendações de como se rir. Observa-se que, assim como a etiqueta à mesa, há uma série inteira de textos sobre os modos de rir. Talvez estejamos bem mais munidos em relação a esses textos.

 o problema da prática do riso é mais complexo. Aqui, novamente, penso que nos deparamos com dois subconjuntos. De um lado, há os textos que mencionam, de forma muito limitada e ingênua, a presença e as formas do riso - por exemplo, em uma crônica em que se vê alguém começando a rir. Experimentar e assimilar todos esses exemplos do riso é importante para uma investigação desta natureza, mas percebe-se o trabalho que isso requer. Por outro lado, há o enorme campo do que geralmente é descrito como cômico. Aqui há uma dificuldade bem diferente, porque é necessário transformar uma análise dos problemas do cômico em uma análise equivalente do riso, sem, naturalmente, perder de vista o que é peculiar ao cômico ou aos textos nos quais é expresso. Em outra palavras, deve-se distinguir os textos nos quais o riso é julgado daqueles cujo objetivo é nos fazer rir. Eles são muito diferentes. E aqui encontramos um dos grandes problemas de nossa pesquisa - a heterogeneidade dos documentos, questões e conceitos. Temos que descobrir se há uma noção unificadora por trás de todos. Devo acrescentar que aqui nos deparamos com uma história dos valores e das atitudes mentais por um lado e, por outro, com uma história das representações literárias e artísticas: uma história do riso e do fazer rir.

 Portanto, temos inicialmente um grande problema: o dos complexos encadeamentos entre estes quatro domínios - valores, pensamentos, práticas e estéticas do riso. Para acrescentar mais uma observação preliminar: embora haja numerosas categorias de riso e o jogo de palavras não seja a categoria mais importante para provocá-lo, é preciso acentuar a importância das palavras e da linguagem. Felizmente, aqui o historiador está mais bem abastecido. Há algum tempo já sabemos usar as perspectivas da linguagem, do vocabulário e da semântica, embora o número de estudos sérios e inteligentes nessa área ainda seja muito pequeno. Finalmente, há o problema do meio linguístico, familiar aos medievalistas: temos que conduzir nossa pesquisa no domínio do latim e no das línguas vernáculas. Penso que essa segunda investigação é ainda mais importante, pois, por diversas razões interessantes, as pessoas riem melhor no vernáculo que em latim. Se são a sua difusão, heterogeneidade e fragmentação que constituem um dos maiores impedimentos ao estudo do assunto, isso, não obstante, permite-nos tocar em muitos temas fundamentais do período em questão.

(continua...)

O Imaginário... As cidades


O imaginário


 Entende-se por imaginário um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo.

 A ideia do imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um conjunto dotado de relativa coerência e articulação. A referência de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a ideia de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção é social e histórica.

 O historiador Bronislaw Baczko, que assim define o imaginário, atribui a esse conceito características de historicidade e abrangência. O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem representações para conferir sentido real. Essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos performances. O imaginário comporta crenças, mitos ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.

O filósofo Coenelius Castoriadis, vai mais além nessa reflexão sobre a natureza do imaginário: para além da sua dimensão histórica, o imaginário é capacidade humana para representação do mundo com que lhe confere sentido ontológico. É própria do ser humano essa habilidade de criação/recriação do real, formando uma espécie de magma de sentido ou energia criadora. A essa condição herdada de construção imaginária do real, Castoriandis dá o nome de imaginário radical, fonte de todo o simbólico. Já à atividade social que atribui sentido ao mundo, construídas a partir de condições históricas e apoiada naquela energia criadora, o autor dá o nome de imaginário efetivo. Este é sempre um imaginário simbólico e opera segundo lógicas próprias, conferindo existência significada ao real.

Vide: História e história cultural
Sandra Jatahy Pesavento
Ed. Autêntica 

Clio, a eterna deusa da história


  No Monte Parnasso, morada das Musas, uma delas se destaca. Fisionomia serena, olhar franco, beleza incomparável. Nas mãos, o estilete da descrita, a trombeta da fama. Seu nome é Clio, a musa da história. Neste tempo sem tempo que é o tempo do mito, as musas, esses seres divinos, filhos de Zeus e de Mnemósine, a Memória, tem o dom de dar existência àquilo que cantam. E, no Monte Parnasso, cremos que Clio era uma filha dileta entre as Musas, pois partilhava com sua mãe o mesmo campo do passado e a mesma tarefa de fazer lembrar.Talvez, até, Clio superasse Mnemósine, uma vez que, com o estilete da escrita, fixava em narrativa aquilo que cantava e a trombeta da fama conferia notoriedade ao que celebrava.

 No tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre os fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado o que deve ser lembrado e celebrado.


                                                          Clio, a deusa da história